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No Pantanal, Escolas das Águas se adaptam ao regime das cheias

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Escola Polo São Lourenço no período de vazante. Foto: Patricia Zerlotti

Carta Educação em 25 de julho de 2016
Por THAIS PAIVA

Com calendário e currículo próprios, unidades organizam suas aulas de acordo com os períodos de inundação e valorizam a tradição pantaneira

 

Escola Polo São Lourenço no período de cheia. Foto: André Luiz Siqueira
Escola Polo São Lourenço no período de cheia. Foto: André Luiz Siqueira

Uma das maiores extensões alagadas do planeta, o Pantanal vive sob o desígnio das águas. Se na estação seca o horizonte ganha campos, bancos de areia, ilhas e canais, quando as chuvas chegam as áreas mais baixas rapidamente se inundam, metamorfoseando a região em um “grande mar” e isolando muitas comunidades.

Nesse cenário, tarefas cotidianas como ir à escola ganham obstáculos hercúleos devido às dificuldades de locomoção. Até pouco tempo atrás, tais condições impediam que filhos de agricultores, pescadores, assentados, peões, pequenos proprietários de terra e de famílias ribeirinhas pudessem estudar.

O quadro mudou depois da fundação de um tipo diferente de escola – as Escolas das Águas. Na zona rural do município de Corumbá, localizado no Mato Grosso do Sul, quase na fronteira com a Bolívia, já são cerca de 5 unidades polos e 6 extensões funcionando nesse esquema.

Diferentemente das Escolas da Terra, situadas em terrenos mais altos e secos e sob o mesmo funcionamento das escolas urbanas, as Escolas das Águas estão hospedadas em regiões mais baixas e, portanto, sob a influência dos rios Paraguai e Taquari.

Seus alunos seguem um calendário escolar diferente. Como o acesso nessa região é difícil, podendo levar até 6 horas de barco para algumas famílias, os alunos estudam em um regime de internato: a maior parte deles permanece na escola por todo o bimestre. Alguns estudantes permanecem na escola durante a semana, retornando para casa nos finais de semana, e outros uma vez por quinzena.

“A divisão entre escolas da Terra e das Águas ocorreu em 1997. Isso facilitou a gestão das escolas tanto do ponto de vista administrativo quanto pedagógico e agora, com a nova reestruturação, dividida em cinco escolas polos, elas ganham ainda mais autonomia”, explica Patrícia Zerlotti, coordenadora de projetos na ECOA Ecologia e Ação, ONG que desenvolve ações nas comunidades onde estão algumas das escolas.

Escola Polo São Lourenço no período de vazante. Foto: Patricia Zerlotti
Escola Polo São Lourenço no período de vazante. Foto: Patricia Zerlotti

O mesmo vale para os professores, que também passam a morar nas próprias unidades educacionais. “Exceto aqueles professores que são da própria comunidade e possuem as suas residências, o restante reside na cidade de Corumbá e ficam alojados nas escolas, retornando para a cidade no final de cada bimestre e tendo de uma semana a 10 dias de recesso”, explica Patrícia. Neste período, lançam as notas, participam de formações continuadas e recebem orientações pedagógicas.

Para atender estudantes do Ensino Fundamental (apenas uma unidade oferece Educação Infantil e desde 2015), as Escolas das Águas adaptaram não somente o cronograma às peculiaridades locais, mas também o currículo, que incorporou a cultura ribeirinha. “Os temas mais específicos são tratados por meio do desenvolvimento de projetos pedagógicos. Todos os anos são desenvolvidas atividades que resgatam e valorizam a cultura e o modo de viver local”, conta Patrícia.

No segundo semestre de 2015, por exemplo, cada extensão escolar desenvolveu um projeto para pesquisar um conhecimento tradicional de sua comunidade, envolvendo professores, alunos e moradores. “Em uma das unidades, na Escola de São Lourenço, os alunos trabalharam como é feito o artesanato com as folha do aguapé/camalote [planta aquática muito encontrada no Pantanal]. Os alunos entrevistaram uma senhora que tem esse conhecimento e levaram para escola”, explica Patricia. A taxidermia da piranha, o conhecimento sobre a variedade de peixes e a identificação e uso de plantas medicinais também apareceram como saberes.

Alunos da unidade do Paraguai Mirim. Foto: Arquivo Escolas das Águas
Alunos da unidade do Paraguai Mirim. Foto: Arquivo Escolas das Águas

 

Na região do rio Taquari, onde as escolas se encontram mais afastadas da água, os conhecimentos tradicionais identificados foram, por exemplo, a construção do carro de boi, muito usado na região antigamente, a doma de cavalo, além de histórias e lendas existentes nas comunidades.

“Agora o desafio é que os saberes tradicionais dos alunos permeiam o currículo escolar durante o período letivo e não somente nos projetos. Mas já vemos uma diferença. Os professores estão compreendendo que estão inseridos em uma cultura diferenciada e que a escola deve respeitar os costumes, ensinar o currículo escolar sem impor a cultura dominante dos centros urbanos”, diz Patrícia.

A pesquisadora acrescenta que as comunidades pantaneiras são milenares e possuem conhecimentos ambientais que, aliados ao conhecimento científico, podem gerar novos saberes que são de extrema importância para a conservação do ecossistema. “Esse conhecimento não pode ser perdido e a escola não tem só a função de ensinar a ler, escrever e somar como era antigamente. Ela deve formar cidadãos que respeitem as diferenças e valorizem suas origens”, conclui.

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